#1 | O Brasil vai voltar, nem que seja como nicho
Há 1001 dias que não tem como escapar. Do despertar ao adormecer, a qualquer momento vou me incomodar com política. Não dá para baixar a guarda: ao menor vacilo, personagens e ideias até então inconcebíveis distorcem a percepção, desconsideram o contexto e sequestram o debate. Por mais atento e forte que esteja, lidar com essa situação é especialmente sacal porque nem sempre foi assim.
Quem já se vacinou ou está prestes a tomar a segunda dose tem a referência de um outro país, com outras prioridades. Onde não se falava nem pensava em política de sol a sol porque havia um presente a ser desfrutado. Onde o sujeito fazia planos para crescer, em vez de se preocupar com manter o que já conquistara ou recuperar o que perdeu. Onde era possível relaxar, sonhar, viver.
A utopia de uma nação gentil e promissora aventada em canções como “Isto Aqui o que É (Sandália de Prata)” e “Brasil Pandeiro” finalmente se cumpria. O brasileiro cantava, era feliz e não se entregava. A gente bronzeada mostrava seu valor, a Casa Branca dançava com a nossa batucada e o mundo inteiro se rendia ao que a baiana tinha. O futuro nos sorria, nosso destino era brilhar.
Claro que a catástrofe atual alimenta a lembrança de um passado idealizado, em que leite e mel jorravam do meio das ruas afogando a desigualdade e a corrupção. Mas basta comparar para se chegar à conclusão de que o projeto vigente potencializa todos os defeitos dos anteriores e nenhuma de suas qualidades – da inclusão à mobilidade social; da leveza à esperança.
Apesar do niilismo paralisante, porém, teimo em acreditar na volta daquele Brasil. Não de forma plena, pois as criaturas abissais que emergiram do processo que nos trouxe até aqui sobreviverão à decomposição de seu criador. E sim como um nicho, tipo o que aconteceu com os Strokes. Quando saiu o disco de estreia da banda, eu era 20 anos mais jovem, achava que o rock ainda regeria o mainstream e não existiam redes sociais.
Deixa eu me iludir, por favor.
Hipocrisia-moleque (sobras de redação)
Logo depois do carnaval de 1999, cruzei com um artista na fila do caixa em um supermercado em São Paulo. Nas gôndolas que nos cercavam, revistas populares destacavam as duas estrelas da folia daquele ano: padre Marcelo Rossi e Tiazinha. O religioso pudico e a dominatrix seminua (cria de Luciano Huck, loucura, loucura, loucura) dividiam quase todas as capas.
Ainda estava maravilhado com a combinação impressa de divino e profano quando o artista se manifestou. Já havia o entrevistado, mas a intimidade que ele demonstrou me surpreendeu. “Se avexe não, isso é a cara do brasileiro: o cristão de pau duro”, riu. Fico pensando em que momento o brasileiro trocou essa hipocrisia-moleque pelo papo-furado de “liberal na economia e conservador nos costumes”.
Piada em debate
Que bom que volta e meia brotam textos para desmentir a velha crença de que escrever sobre música é dignificar uma bobagem. Afinal, é (também) para isso que pago a internet:
Top 500 da Rolling Stone: uma análise histórica – Marco Antônio Barbosa (o Bart!) mostra que os rankings das melhores canções de todos os tempos segundo a vetusta revista sempre disseram mais sobre o mercado e a faixa etária dos votantes do que sobre a qualidade artística das selecionadas. Se a lista mais recente comporta menos machos, brancos, roqueiros e anglófonos do que as anteriores, é porque hoje isso é bom para os negócios, não uma suposta rendição ao politicamente correto.
Para onde foram as bandas? – Na Gama, Leonardo Neiva investiga as razões da predominância de artistas solo nas paradas. É um fenômeno bem contemporâneo e, em se tratando de Brasil, ainda mais curioso se levarmos em conta que está cheio de ex-bandas em atividade no cenário nacional.
APARELHO | Descontração sanitária acaba em arrebentação
Sob as bênçãos do infinito Ota, largamos a política e a CPI na estrada – não sem antes levantarmos a suspeita de que Rolex é a sigla para “Rolos do Exército”. Nossa tendência em falar de coisas sobre as quais não entendemos, entretanto, continua intacta: 11 de setembro chinês, trilha sonora de festa de comunista, a primeira vez de Nevermind, a hora da música lenta e o mistério da virada de bateria que surge quando menos se espera, entre outros temas. De falta de assunto ninguém morre aqui.
PLAYLIST | no beiço da boca da noite
Playlist é como CPI: sabe-se como começa, nunca como acaba. Eu só vou no flow.