A atividade remunerada ideal chegou ao fim com um telefonema. “Se soubesse que aquela seria a última, teria caprichado mais”, brinquei. “Você continua nos nossos planos”, brincou mais ainda a voz do outro lado da linha. Com a polidez e a satisfação inatas dos portadores de notícias desagradáveis, ele me avisou que o jornal Correio Popular, de Campinas (SP), não iria mais publicar minha coluna semanal por “razões econômicas”. Até esqueci que um dia acabaria, de tanto que durou: quase cinco anos, de longe meu recorde em qualquer emprego.
Muito antes de o home office virar uma solução sanitariamente correta para a precarização do trabalho, eu já experimentava as vantagens e desvantagens de fazer a roda da economia girar sem nenhum contato humano nem nenhum direito. De 2000 a 2005, todas as segundas-feiras eu enviava por email o texto que seria impresso na edição seguinte. No quinto dia útil de cada mês, depositavam a devida merreca na minha conta bancária. Sem férias, sem 13º, sem FGTS. Eis o segredo da longevidade, coaches.
Fui parar lá graças ao então responsável pelo caderno de cultura do diário. O atual dono de um nanoconglomerado de mídia que inclui blog, canal no YouTube e colaborações para a imprensa imperialista achava interessante ter meia página por semana assinada pelo editor-chefe da mais importante revista de música do país na época. Ele confiava na minha prolixidade para levar entretenimento saudável ao rico interior paulista – e, principalmente, estava certo de que apenas eu aceitaria a mixaria oferecida em troca.
Combinamos que a coluna sairia às terças. Para mim, perfeito. É o dia da sorte de Escorpião (meu signo) e Áries (meu ascendente). Eu pelo menos podia dizer que só sabia disso porque devorara livros de Linda Goodman na adolescência para puxar assunto com as púberes. Desconheço o pretexto que o pessoal alega hoje para adotar preços terminados em 7 como uma estratégia de marketing que usa técnicas psicológicas para influenciar a percepção dos consumidores a respeito do valor. Enfim, cada um com seu pensamento mágico.
O fato é que os astros conspiravam a meu favor. Portanto, não liguei quando meu contratante largou o jornal, pouco depois. Sem ele, eu – que jamais visitara a cidade nem tinha visto um exemplar do jornal e sequer meu texto impresso – perdia o único elo com a redação campineira. Um amigo paranoico levantou a hipótese de que não existia coluna nenhuma. Na verdade, o destinatário do material por mim remetido seria um milionário bugrino que nutria uma afeição platônica pela minha prosa, pagando-me para não dividi-la com mais ninguém. Em vez de sexo solitário, uma espécie de brochada idem.
Foram 253 semanas inspiradas por uma tela em branco. Escrevia sobre tudo, com cuidado para não escancarar tanto o meu despreparo. Falava das coisas simples do Brasil, como ensinava o Gueto, e também de coisas que você nunca viu. Autonomia total, no conteúdo e na forma. A rigidez ficava com o formato, cinco parágrafos com 700 toques cada. Às vezes um pouco mais, nunca menos de 3,5 mil caracteres. Dizia uma propaganda que o importante é ter estilo. Quem não tem, inventa um, digo eu. Ou faz da ausência o seu.
Na impossibilidade de farejar minha obra no papel (porque nunca me mandaram um exemplar!), me rendi à versão digital. No site, o fruto do meu ofício era publicado ao lado de uma caricatura baseada na minha foto da carteira de motorista. Aí, resolveram permitir o acesso somente para assinantes. Eu teria que pagar se quisesse me ver na internet. Entre partir para a ignorância (porque nunca me deram uma senha!) ou partir para outra, deixei que o acaso corporativo decidisse por mim. Até o telefone tocar e desmoralizar o zodíaco.
O capitalismo menospreza o horóscopo, mas respeita o retorno de Saturno de um jeito singular: a oportunidade de, após um período de tempo, voltar a ganhar dinheiro com algo já feito. Essa força estranha me levou a fuçar, recentemente, a pasta onde salvei os arquivos das colunas. Vai que rendam um livrinho, pensei. Percebi que poucas ainda prestam. E descobri que, por mais gigante que seja meu ego, meu senso do ridículo é maior. Da decepção à esperança, fiz as contas e concluí que ainda faltam alguns anos para os planetas se alinharem novamente.
Celebremos a impermanência
Só se fala no novo documentário sobre os quatro rapazes de Liverpool, que não vi porque outros ratos bateram minha carteira antes do streaming do Mickey. Quis o destino que o filme estreasse às vésperas dos 20 anos da morte do beatle George, completados nessa segunda. Aproveitei que estava com a mão na massa e fui pesquisar o que escrevi na coluna de 4 de dezembro de 2001, a primeira terça-feira depois do passamento.
Fazia outros 20 anos, quase 21, que a humanidade não acordava com a notícia de que um dos quatro rapazes de Liverpool morrera. A primeira – e até a quinta-feira em que George Harrison partiu, a última – tinha sido em 9 de dezembro de 1980, quando John Lennon foi assassinado. Uma pegou todos de surpresa, outra permitiu alguma preparação.
Enquanto a morte de Lennon deixou um grande “por quê?”, a de Harrison mereceu diversos “que pena”, “parou de sofrer” e “foi melhor para ele”, entre outros clichês resignados. Vítima de um câncer que o fustigava desde 1997, o guitarrista expirou com a mídia em alerta. Seu obituário já estava pronto, restando apenas as lacunas para a data e a causa.
Vi uma foto dele careca, já debilitado pela quimioterapia, mas a imagem que ficou em minha memória foi a do beatle místico, que ainda não tinha tocado guitarra para a versão em inglês de “Anna Julia”. Chutei que não levaria outras duas décadas para a gente chorar por Paul McCartney e Ringo Star. Que bom que errei.
Tomara que demore bastante para que sobre apenas um deles. Se Ringo, mais velho, outra vez contrariar a lógica e for o último sobrevivente, poderá recontar toda a história dos Beatles. Como revelar, por exemplo, que ele que compôs “Hey Jude”, “Help” ou “Something”.
APARELHO | Até os cactos merecem respeito
Foram três longas semanas. Os ânimos ficaram acirrados, esgotaram-se os ansiolíticos, não sobrou um camarão para desanuviar. O que seria mais uma simples conexão à rede mundial de computadores acabou se tornando um retrato fiel de como as privatizações prejudicam a democracia sabotando o livre fluxo de groselha & abobrinhas. Mas resistimos. E, impávidos como Muhammad Ali, tranquilos e infalíveis como Bruce Lee e sedutores como Aristides, voltamos para fazer da realidade a nossa noivinha.
PLAYLIST | a resposta pra tudo está no colapso
Extrato agora também é programa de (web) rádio. A culpa é do povo da Peep FM, que me convidou para rolar uma horinha de música no meio de tanta gente boa que já faz parte da programação. Estreou ontem, às 21h, e suponho que será reprisado tão logo surja um espaço na grade.
O programa é basicamente a playlist que você ouve aqui, com uma atração (?) extra: minha locução. Peço desculpas de antemão pelo meu sotaque da Cornualha ao pronunciar nomes de artistas e de músicas em inglês e prometo me desdobrar para agradar as ouvintes. Conto com sua audiência na próxima segunda.
eu vou ouvir!!!! te amo