#29 | Uma bem-vinda força estranha no ar
Eu vi um menino correndo. Eu vi o tempo de mais de dois anos sem ir a um show se dissipando por todos os acessos ao Largo da Catedral. Na escadaria da igreja, pela calçada, invadindo a Praça XV e as ruas ao redor, tudo estava tomado como se fosse carnaval. Em tese, tamanha movimentação se justificava para assistir ao BaianaSystem. Na prática, foi uma noite de reencontros com ações, lugares, pessoas, energia e afetos que se sucediam em camadas pelo sábado no Baixo Centro de Florianópolis.
Eu vi muitos jovens brincando. Ouvi seus gritos. Eram mais de êxtase pelas promessas que o momento cumpria do que acompanhando algum refrão da banda. Identifiquei diversos espécimes da fauna urbana: gente que não perderia aquilo por nada, gente que caiu de paraquedas, gente que só queria o apoio de um gudanzinho. Gente que engrossava o coro contra o presidente com palavras que, naquela circunstância, tinham o mesmo efeito inócuo que “toca Raul”, mas serviam para marcar posição e delimitar território.
Eu vi muitos cabelos brancos. Na fronte de adultos que esbanjavam espírito juvenil ou apenas atraídos pelo agito, curtindo com frescor adolescente a vibração que emanava da plateia e do palco. Costeando a massa pelas beiradas, tinham idade para se lembrar da última vez que o local recebera tantas vozes dispostas a se erguer para expulsar um reacionário, em 1992, no impeachment de Collor – e sorriam com o que consideravam um bom presságio histórico.
Eu vi uma organização surpreendida pela multidão. Apesar de os baianos emplacarem em abertura de novela e carregarem a fama de serem incendiários ao vivo, nem o mais otimista integrante da produção imaginava que o principal nome desta edição da Maratona Cultural da cidade arrastaria cerca de anunciadas 10 mil cabeças. Pois deu tudo certo, e aqui cabe um efusivo salve para a equipe que se desdobrou para converter dinheiro público em três dias de arte gratuita para a população.
Eu vi duas das minhas sistas queridas. Ambas apareceram radiantes com seus novos cabelos e a sintonia de sempre nos barzinhos da Victor Meirelles, onde o fluxo incessante para cima e para baixo indicava que a festa se estenderia madrugada adentro. Dei risada com um ex-colega de trabalho, típico manezinho gozador. Cruzei com meu compadre, todo bonitão com sua consorte. Conversei com um chapa, repórter fuçador, sobre amenidades adequadas à ocasião. Bebi chuva, inalei o petricor.
Eu vi mais do que esperava ver. Menos o show. O mais perto que consegui me aproximar foi a uma distância na qual o som chegava difuso em graves e batidas. Nem me importei. Eu não precisava ouvir as músicas que gosto do grupo ou me ligar na sua performance; na verdade, eu não precisava nem ficar ali para sentir uma bem-vinda força estranha no ar. Eu estava pelo rolê daqueles que não podem parar porque conhecem o jogo do fogo das coisas que são. Aí fui para casa e vi estrelas.
(foto: Elisa Imperial/Toia Oliveira/Divulgação)
Ao vivo e chutando os clichês
Nunca fui muito de álbuns ao vivo. Para mim, disco é disco e show é show. Em um, quero ouvir as possibilidades que só o estúdio dá. Em outro, busco algo que também envolve música, mas é evidente que todo o contexto influencia na experiência. Por isso, dá para contar nos dedos os registros captados diretamente do palco que recomendo, listados em ordem decrescente pelo número de vezes que ouvi:
Curtis Mayfield, Curtis/Live! (1971) – Clima de clube enfumaçado, falsete sem vergonha de se entregar e canções que falam de amor sem perder o crédito na quebrada. Apenas receba.
Cure, Concert (1984) – Para muitos brasileiros (eu incluso), a primeira vez que ouviram alguns dos clássicos do grupo foi nessas versões aplaudidas pelos fãs ingleses.
U2, Under a Blood Red Sky (1983) – Última oportunidade de ouvir os irlandeses ainda com uma aura de alternativos antes de eles conquistarem os Estados Unidos.
Bob Marley & The Wailers, Babylon by Bus (1978) – Se qualquer disco deles já parece uma compilação de hits, imagine o set list de shows em Londres e em Paris.
Who, Live at Leeds (1970) – Uma das maiores bandas de rock de todos os tempos, gravado com a formação original em uma de suas turnês de maior sucesso.
APARELHO | Information Society é melhor que Depeche Mode
Cansados de emitir mensagens cifradas para deixar a audiência curiosa, recorremos às mais eficientes artimanhas de sedução digital com a intenção confessa de convidá-la para embarcar no nosso bonde. Queremos saber o que você está pensando, o que está sentindo, o que passa pela sua cabeça. Agora, se você prefere curtir o silêncio, problema seu. Vai perder não apenas comparações estupefacientes em torno de música para dançar, como também diagnósticos de última geração sobre sorvetes com sabor de problematização e comidas infantis com aroma de erva. Pura energia que dá gosto!
PLAYLIST | nada fica impune
Não vá dizer que não quis.