Quase não falo de música aqui, mas não dá para deixar passar batido um disco do tamanho de Sobre Viver, de Criolo. Como tudo o que envolve o artista, o álbum chegou na última quinta cercado de toda uma expectativa promocional. Tem sido assim antes mesmo de sua estreia como ex-Doido: Nó na Orelha nem havia se revelado e já era considerado um dos melhores de 2011, divisor de águas e outros superlativos quetais. Não seria agora, com nome estabelecido no mercado, que ele receberia tratamento diferente.
Sobre Viver é seu primeiro disco “à vera” desde 2014, quando Convoque seu Buda emanava alguma esperança diante de um país que se deteriorava. De lá para cá, enquanto o pior cenário se consumou e não para de se superar, Criolo caiu no samba com Espiral de Ilusão (2017). A estética urbana e o discurso combativo ficaram restritos a singles pontuais, afinados com o espírito da época – quem quiser entender o que rolou em 2018 basta ouvir Boca de Lobo, lançada às vésperas das eleições daquele ano.
Nesse novo trabalho, a mensagem contundente associada ao rap se insinua muito mais na essência do que na música. A maioria das dez canções desmente o que a predominância da dupla Tropkillaz (parceira nos singles Sistema Obtuso, de 2020, e Cleane, de 2021) na produção sugeriria. Nunca a ponte que Criolo perseguiu com outros estilos esteve tão evidente, a ponto de mal se distinguir seu gênero de origem. Ritmo & poesia a serviço de algo muito parecido com o que antigamente se chamava MPB.
O rótulo é vago de propósito, para caber tantas referências. A sigla comporta a tabelinha com Milton Nascimento em “Me Corte na Boca do Céu a Morte Não Pede Perdão”, por mais inusitado que seja ouvir o solene mineiro falando “biqueira”. Acomoda raízes afro-caetânicas com leveza e elegância em “Ogum Ogum” e “Yemanjá Chegou”. E acena para o reggae em “Moleques São Meninos, Crianças São Também”, confirmando a manha jamaicana já demonstrada nas clássicas “Samba Sambei” e “Pé de Breque”.
Que bom que ele está nessa(s) onda(s), porque anda escrevendo de um jeito que não evita uma certa pieguice quando embalado por sonoridades mais, digamos, ferozes. É um tal de Pai aqui, citação bíblica ali, salve as criancinhas acolá em um misto de moralismo e culpa cristã de fazer Damares se orgulhar. Sorte que “Quem Planta Amor Aqui Vai Morrer” desvirtua no flow ininteligível e “Diário do Kaos” remete a um Belchior da quebrada, se não nem os manos iriam aturar essa vocação entre guru e coroinha.
A seriedade vem do luto pela irmã Cleane (morta de covid em 2021 e homenageada também em “Pequenina”) e das broncas permanentes que se acentuaram. Há que se respeitar e se admirar. É tudo muito maduro, muito adulto, muito condizente com um cara de 46 anos e mentalidade equivalente. Eu gostei, o que devia ser motivo de preocupação para Criolo: ao atrair gente da mesma geração, talvez Sobre Viver não faça tanto sucesso com os mais jovens. A não ser os chatos.
Aí já são outros 500
Saiu a relação dos dez primeiros colocados na lista dos “500 maiores álbuns brasileiros de todos os tempos” idealizada pelo podcast Discoteca Básica, do chapa Ricardo Alexandre. Clube na Esquina (1972), de Milton Nascimento e Lô Borges, ficou no topo, e o único disco pós-1974 a figurar entre os top 10 é Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC’s. Significa.
O ranking foi elaborado a partir de uma votação envolvendo 162 jornalistas, produtores, músicos, especialistas – e eu. Cada eleitor escolhia 50 discos e a relação completa será publicada em um livro que em menos de 24 horas bateu a meta de financiamento coletivo. Mas você ainda pode contribuir e garantir seu exemplar (além de recompensas) até 9 de julho.
Lista é aquela coisa volátil que reflete a época em que foi feita e o perfil dos votantes. Olhando a que entreguei para o projeto, já mudaria algumas indicações. Principalmente da 20ª posição em diante, quando o gosto pessoal passa a ser um critério mais levado em conta do que importância histórica ou influência. Deixo aqui minha dezena campeã:
01 – A Tábua de Esmeralda, Jorge Ben (1974)
02 – Mutantes, Os Mutantes (1969)
03 – Getz/Gilberto, João Gilberto, Stan Getz e Tom Jobim (1963)
04 – Acabou Chorare, Novos Baianos (1972)
05 – Cartola, Cartola (1974)
06 – Tim Maia Racional Vol. 1, Tim Maia (1975)
07 – Secos & Molhados, Secos & Molhados (1973)
08 – Tropicália ou Panis et Circensis, Vários Artistas (1968)
09 – Transa, Caetano Veloso (1972)
10 – Krig-ha, Bandolo!, Raul Seixas (1973)
APARELHO | Essas coisas que ultrapassam a lógica humana
Sob os olhares do Predador cantando o Hino Nacional na passeata bovina, embarcamos em um desenxabido rolê abastecido pelos milésimos de real finalmente vetados no preço dos combustíveis. Pode parecer pouco, mas é justamente a economia representada por esse verdadeiro NFT energético que vai criar uma indústria de coquetéis molotov para ensinar duas ou três noções de civilidade eleitoral aos bastardos. Até lá, tudo o que podemos fazer é promover abraçaços nos meganhas e ecoar o mantra que saiu da obra imortal de Vanessa Rangel para entrar na boca do povo: milico não dá, palpite!
PLAYLIST | corpos de frente, de lado, de quatro
Tudo amassado e embaraçado.
Pois deveria falar mais de música então! Maravilhoso!
Uau, que maravilha de texto. A cada semana esse extrato só melhora. Gracias.