Era uma vez uma formiga e uma cigarra que moravam no Rio de Janeiro. Como na antiga fábula, uma trabalhava no verão enquanto a outra cantava o ano todo.
Por mais alta que estivesse a temperatura, a formiga passava o dia inteiro carregando folhas da rua para o formigueiro. O crepitar dos gravetos secos no terreno onde ia buscar alimento, a algazarra das irmãs diante de um canudo melado de refrigerante caído no caminho, mesmo as imprecações que, mentalmente, rogava contra os impostos leoninos; tudo era abafado pelo chiar incessante e estridente da cigarra. E assim cada uma ia seguindo seu destino, sem maiores questionamentos.
O que Esopo não conta é que havia outra formiga e outra cigarra – em Florianópolis. Como suas congêneres cariocas, as duas viviam naquele ramerrão.
Descendente das oligarquias manezinhas, a formiga já nasceu funcionária do Estado em regime integral e dedicação exclusiva. Desde que se lembrava, carregava folhas entre repartições e gabinetes. Tinha direitos, licença-prêmio, gratificações, abono-qualquer-coisa. Prestes a ser promovida por tempo de serviço, um pensamento a inquietava com uma frequência crescente: não fez metade do que imaginava que faria e fez o dobro do que jamais imaginou que fosse fazer.
A cigarra era o oposto. Trocara uma promissora carreira corporativa na metrópole para se dedicar à música e ao desapego na Ilha da Magia. Não teria chefe, mas não teria salário. Não teria horário, mas não teria férias. Não teria muito dinheiro, mas não teria muitas despesas. Ao se estabelecer na cidade, porém, descobriu que seu carma envolvia uma dose bem mais generosa de estoicismo: não teria nem metade do que sonhou pelo dobro do que podia bancar.
Encerrado o verão, as perspectivas mostravam-se desoladoras para a cigarra. Além de ninguém estar interessado em seu repertório autoral, o mercado de covers estava cada vez mais fratricida. Os bichos se matavam para sobreviver entoando canções de Kid Abelha, Pato Fu, Cachorro Grande, Ratos de Porão e demais espécimes da fauna pop por cachês que geralmente não passavam de “mídia” (um cartaz padrão com o nome da atração escrito com pincel atômico) e “camarim” (um banheiro para trocar de roupa).
Em uma noite fria, a formiga foi ver o show da cigarra. Entrou, pediu uma bebida e ficou encostada no balcão, avaliando o (fraco) movimento. Quanto pior, melhor para suas intenções. Negociou sua saída do funcionalismo e comprou o bar por uma ninharia. Ela não trabalhava só porque não sabia cantar. Era porque ninguém pagava – com razão – para ela cantar. Sendo dona do lugar, convocaria a si própria para subir ao palco. Não pelo talento, muito menos pela grana, e sim pela realização.
A cigarra também estava decidida: iria se inscrever em um concurso público.
Na mesma época, em uma tarde especialmente quente em Copacabana, a formiga local se encheu.
— Já estamos no meio do ano, não tem mais espaço para folha nenhuma lá em casa e nada de esse calor ir embora! — protestou.
Sem parar de inflar seu abdômen ao ritmo de “Grilo na Cuca”, a cigarra retrucou:
— No Rio não tem inverno…
Pois é, em Florianópolis tem.
Moral da história: A frustração é a mãe da resiliência.
Unidos sofreremos
Depressão cívica – Maldizendo Tolstói, todo brasileiro é feliz à sua maneira, mas cada brasileiro infeliz se parece neste ex-país. Entre as razões do tormento psíquico coletivo, estão “a tortura que é acompanhar o noticiário”, “o bombardeio das várias formas de desmonte institucional” e a “normalização da catástrofe”. Quem ainda não surtou nem cansou não está entendendo nada ou está entendendo demais.
Rumo ao sopé – Pesquisa feita em 30 países revela que de 2013 a 2021 a parcela de brasileiros que se considera “muito” ou “bastante” feliz caiu de 81% para 63% – o ranking é liderado pelos holandeses, com 86%. O resultado nacional é inferior à média mundial (67%), mas o governo tem até o final do ano para reduzir ainda mais o índice e colocar o Brasil acima de todos no quesito baixo astral.
APARELHO | Mundo Aleluia
Não levamos arte ao povo, não fiscalizamos o tororó alheio nem enriquecemos com dinheiro público, mas também estamos prestes a jogar a toalha. Só não jogamos ainda porque, como ensina o mochileiro das galáxias, nunca se sabe quando se vai precisar de uma. Molhada e enrolada, por exemplo, ela se torna um argumento e tanto para um debate com os fariseus que vilipendiam a pureza do sertão. Em vez disso, porém, preferimos flanar por sinapses que valorizam o que temos de mais holístico, culminando com o grito universal de louvor que virou sinônimo de milagre. Basta acreditar!
PLAYLIST | o todo implode em um momento
Um Deus alegre e um amor tão leve, o resto a gente resolve.
Muito melhor essa sua versão da fábula... Engraçado que nesses dias estava pensando justamente nessa fábula, em como ajuda a retratar a desvalorização do trabalho artístico...