#4 | Onde germina a semente da inovação
Na acirrada disputa pelos produtos e serviços que redesenharão o mundo pós-pandemia, um modelo inovador em sua simplicidade – ou simples em sua inovação – promete se transformar no próximo filão nos centros urbanos. É o Espaço Acolher, um pomar em que o próprio cliente colhe a fruta. As crianças adoram. Os pais bancam. Todos se divertem. “E voltam renovados para casa”, completa o idealizador Carlos Antonio de Oliveira, 34 anos. “Tudo graças a uma galinha”, suspira.
Caô, o siglema com suas iniciais pelo qual é conhecido entre os traders do mercado financeiro, sempre teve o espírito inquieto típico de sua geração e classe social. Filho único de um casal de advogados de classe média alta, não terminou nenhuma das três faculdades que cursou. Aprendeu na prática, dando a cara a tapa. “O empresário brasileiro é um guerreiro, praticamente paga para trabalhar”, desabafa o ex-sócio de uma temakeria em shopping center, um food truck de hambúrguer gourmet e uma padaria artesanal.
Foi quando descobriu o bitcoin, em 2018. Caô ouviu dizer que, para se dar bem naquele negócio, o segredo era minerar. O alto consumo de luz foi fácil de resolver. Ele montou seu QG no sítio da família, nos arredores da cidade, onde instalou uma microcentral hidrelétrica na corredeira que atravessa os fundos do terreno e painéis de energia solar nos telhados da Casa Grande. Difícil mesmo foi achar a mão de obra pelo salário mínimo oferecido. Acabou fechando com um incel por R$ 2 mil mensais, sem carteira assinada.
Mas Caô nunca foi de se acomodar com o dinheiro que, se não ganhava com criptomoeda, jazia da conta dos pais. A vontade de ter um propósito e deixar um legado o atormentava. Até que recebeu uma visita inesperada na tarde do terceiro sábado de setembro de 2020. Apesar da pandemia, não tinha como recusar: era um amigão recém-separado, destruído pela mulher que o trocou por outra. “Sei a data certinha porque aquele era o final de semana dele com o filho”, lembra. Mal imaginava ele que estava abrindo a porta para o seu futuro.
Solteiro profissional, Caô morava na antiga casa da avó. Com exceção dos halteres e da coleção de armas que dividiam um dos cômodos, não havia nada que pudesse entreter o menino de seis anos para os adultos falarem em paz “daquela vaca”. Ou melhor, quase nada: junto com um teto para chamar de seu, ele havia herdado a galinha que a falecida criava como um pet. Bastou destrancar o galinheiro atrás da dependência de empregada e a criança ficou hipnotizada com o monte de penas cacarejando e correndo errante pelo quintal.
“O moleque nunca tinha visto uma galinha de verdade”, garante Caô. O fascínio do guri com uma criatura tão prosaica reavivou nele a chama do empreendedorismo e, com o perdão do trocadilho, tornou-se seu ovo de Colombo. O plano inicial era construir um local em que os pequenos participariam de todo o processo de metamorfose de galinhas, porquinhos e bezerros em comida para os humanos. “Infelizmente, a sociedade ainda não está preparada para uma disrupção dessas”, lamenta-se.
Da frustração com a hipocrisia, o projeto evoluiu para uma alternativa similar envolvendo apenas vegetais. Em vez de sangue, ossos e bifes, suco, sementes e geleias. Nascia o Espaço Acolher. O ponto escolhido foi uma gleba de dois hectares em um bairro perto do centro, outro – ops! – fruto da herança da avó, em que Caô pretendia cultivar maconha para fins medicinais. Como a legalização da erva emperrou, o mato e o MST ocuparam a área improdutiva. Não por muito tempo.
Ajudado por um esquadrão especializado em proteção patrimonial, ele expulsou os invasores, com o cuidado de manter as bananeiras, goiabeiras e limoeiros que eles haviam plantado. Para diversificar a oferta, Caô providenciou árvores já crescidas, totalizando 12 tipos de frutas, como maçã, manga, abacate, bergamota e acerola. “O nome veio quase automaticamente, sugerindo tanto a acolhida quanto a colheita”, explica. A microempresa estava pronta para operar.
“Microempresa, não. Somos uma startup telúrica, usamos a tecnologia da terra”, corrige Caô, afinado com o vocabulário da economia criativa que soa como música para os anjos do setor. Nessa novilíngua, o Espaço Acolher é muito mais do que uma feira em que o freguês arranca a fruta diretamente do pé. “O que disponibilizamos é uma experiência sustentável, orgânica e consciente da jornada do alimento do solo até a mesa do consumidor”, explica ele.
Os produtos colhidos podem ser devorados no próprio estabelecimento ou levados para casa – não sem antes serem pesados e cobrados, a preços que variam de R$ 5 (limão galego) a R$ 99 (pitaia) o quilo. Uma monitora informa as propriedades nutricionais de cada fruta e um vigia fiscaliza para que ninguém coma nada sem pagar. Ambos são expressamente proibidos de encostar em qualquer criança. “A intenção é que os pais se integrem à atividade, ajudando os filhos a subir nas árvores”, justifica. A empresa não se responsabiliza por eventuais quedas.
O excedente é vendido para uma fábrica de ração. O que apodrece, doado para instituições de caridade. “Se cada um fizer a sua parte, tem comida para todo mundo”, acredita Caô. Quanto investiu, ele não fala nem sob tortura. A expectativa é de recuperar o valor aplicado até o final de 2022 para, então, definir os passos seguintes. Otimista, o empreendedor não descarta um retorno às suas vocações originais. “Dependendo do que acontecer com o Brasil, cogito plantar maconha”, revela. “Ou simular um matadouro animal, talvez até com a possibilidade de atirar nos bichos.”
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A história acima é fictícia, mas Caô é o que mais tem por aí.
Vapor barato
Dá um trabalho danado fingir que não me importo com as novidades musicais. Na verdade, não suporto ficar longe dos lançamentos. Tento ouvir todos que (me) importam, principalmente os nacionais. Se não falo deles por aqui, é porque não me tocam o coração. Feito o esclarecimento, saúdo a chegada de Maya, terceiro disco do pernambucano Tagore. É o tipo de som que aquece, alivia e leva para uma dimensão prazerosa.
Confesso que ainda não sei se é um artista solo ou uma banda. Tagore é o nome do vocalista (completado pelo não menos fantástico sobrenome Suassuna), mas foi como grupo que encarei o quinteto no show que vi em Florianópolis em abril de 2017. Assisti-lo ao vivo confirmou as melhores impressões que eu já tinha do álbum Pineal: no palco, a psicodelia ganhava cores e timbres mais vibrantes.
Talvez tenham sido as doses de cachaça defumada; o fato é que saí da extinta Casa de Noca, na Lagoa da Conceição, flutuando até despertar em uma loja de conveniência atrás de um saco de batata frita, em uma situação famélica que a memória guardou como bestial devastation. Aquela sensação se renova e se expande agora, sem o Tame Impala a lhe fazer sombra nem despertar comparações sempre desfavoráveis.
A banda australiana era uma referência tão forte no trabalho anterior que havia uma música chamada “Apocalipse Jeans” – uma brincadeira com “Apocalypse Dreams”, dos aussies. Enquanto os cangurus se tornaram mais sintetizados, Maya acentua o que só o Tagore tem: uma lisergia agreste, às vezes brega, sempre agradável. Além da faixa-título, recomendo “Olho Dela”, “Areias de Jeri” e “Molenguita”. Para os já iniciados, a pedida é “Espaço Tempo”. Consuma sem moderação.
Efeitos um para o outro
Sou um ignorante (também) em audiovisual. Não vejo filmes ou séries para refletir nem para me conscientizar sobre coisa nenhuma. Só quero me distrair durante algumas horas. Foi nessa condição que enfrentei os oito episódios de Nove Desconhecidos (Amazon Prime). Portanto, releve quaisquer besteiras que ler a seguir.
Uma escritora frustrada, um jovem casalzinho, um ex-jogador de futebol americano viciado em oxitocina, um gay na fossa, uma mulher abandonada pelo marido e uma família (pai, mãe e filha) traumatizada pelo suicídio do filho vão para uma clínica em busca de cura, conforto, consolo ou esperança. Tudo sob os cuidados de Masha (Nicole Kidman), a etérea e doentia dona do pedaço.
Ora, todo mundo sabe ou devia saber que se enfiar no meio do mato para consertar a cabeça é roubada. No caso deles, a ficha custa a cair porque a Tranquillum House é um spa de luxo e porque são submetidos a um tratamento com psilocibina, LSD e MDMA. Quando cai, é sensacional. E o final surpreendente redime o primarismo com que a série aborda a questão das terapias à base de drogas.
Em tempo: a música tema é uma versão em 50 tons de cinza de “This Strange Effect”, dos Kinks, cometida pela banda Unloved. Sou mais a releitura indie sussurante da dupla The Shacks, conforme você pode conferir na playlist desta edição.
PLAYLIST | antes de ela te dizer que é tarde demais
Começa no macio, no gostoso. Emenda com uma delicinha. Inunda o ambiente de aromas e sofrência. Emerge pop. Amadurece sem perder o frescor. Desencana. Termina comendo haxixe. Parece interessante.
Transparência
Nesta semana o número de assinantes ultrapassou a cabalística marca centenária. Pouco para o mercado me considerar um influencer, demais para as minhas pretensões mais delirantes. A todos – e especialmente a todas, já que aqui elas são maioria –, meu muitíssimo obrigado.