#5 | Em terra de jacu, quem tem coco é rei
Tudo o que conheço de Caetano Veloso cabe em um post-it e ainda sobra espaço. A ignorância nunca foi empecilho para o ranço. É que cresci em uma época em que ele personificava o establishment, o carteiraço, a entidade que concedia uma fresta de sua luz genial aos estúpidos mortais. Por isso, o espanto quando me vi interessado no disco novo do semideus de Santo Amaro da Purificação (BA). Para surpresa ainda maior, Meu Coco não enche o saco.
O mundo mudou, Caetano também. Ele nem de longe representa mais o inimigo a ser combatido, é apenas um inofensivo vovô de pijama tocando violão em casa. Cada música que lança ainda é um evento capaz de comover os jornalões, mas o fato de mobilizar mais a imprensa tradicional do que as redes sociais é sintomático: hoje, Caetano é enorme somente para o público que consome veículos impressos ou suas versões online. Ou seja, para a geração dele e a seguinte, jamais a atual.
Apesar de – ou justamente por – agora qualquer zé mané ter opinião sobre tudo, o que o Caetano acha da vida, do universo e de tudo mais pouco reverbera. Se isso o incomoda mesmo nove anos depois de seu último álbum solo de estúdio, Abraçaço, ele não passa recibo. Continua verborrágico como no tempo em que era consultado para falar sobre o último pacote do governo, alguma guerra em curso, a matança de pirarucus ou o decote da atriz gostosa, fazendo de Meu Coco mais um “manual do mundo” em sua discografia.
Ao longo de 12 músicas, Bahia, Líbano, Vitória, Europa, Rio, Belém, Natal e Vale do Silício são alguns dos lugares mencionados. A geografia retórico-sentimental só perde para as dezenas de artistas, celebridades, familiares e amigos citados, a começar pelo nome de “GilGal” e “Enzo Gabriel”. O name-dropping abre o disco com Simone na faixa-título, desenterra Peri, Ceci e Ganga Zumba no fado “Você Você” (em que Caetano divide o sotaque português com a cantora lisboeta Carminho) e fecha com Carlinhos Brown na saideira “Noite de Cristal”.
Exceto a canção que encerra o trabalho, registrada por Maria Bethânia no recente Noturno, e “Pardo”, que ganhou versão muito mais solene do que a entoada por Céu em Apká! (2019), as demais foram compostas para Meu Coco. Gravado durante a pandemia no estúdio doméstico montado na maison Veloso, o disco tem uma sonoridade plácida, devagar, à feição do astral “reflexivo” das letras. Eta, eta, eta, aquele cantor faceiro virou um velhinho desiludido com o planeta.
Quase no final, “Sem Samba Não Dá” eleva o ritmo sem alterar o batimento cardíaco e pode fazer sucesso nos shows, com o cantor dançando o miudinho. É o momento mais animado de um álbum que não cansa nem empolga, assinado por um artista muito maior do que qualquer coisa que produza. Em um cenário dominado pelo coro dos contentes, um Caetano pistola como em “Anjos Tronchos” já faz a diferença. Ele não tem culpa de a régua estar tão baixa.
Aliás e a propósito
(Em 1999, quando a internet ainda era movida a modens, tive o privilégio de criar um site com os queridos Camilo Rocha, já um nome consagrado da imprensa musical, e o então imberbe André Valente, que se tornaria um talentoso quadrinista e ilustrador. Era o The Bambas, que durante o pouco tempo hospedado no jurássico Geocities saiu até na Folha de S. Paulo. A responsável pela proeza foi uma nota intitulada “O caô do Caê”, reproduzida abaixo.)
Desde o início de sua carreira, Caetano Veloso tem servido como aglutinador de artistas e personalidades públicas. Uns dizem que é seu espírito generoso, outros que é apenas uma forma de cooptar forças que possam gerar antagonismo ao que ele instituiu nos anos 1960. Curiosamente, todos os artistas de sucesso que se envolveram com o autor de “Alegria, Alegria” tiveram um destino conturbado. Nem seus colegas tropicalistas escaparam, mas estes só sofreram a maldição após a volta de Veloso de seu período de exílio – caso do poeta paiuense Torquato Neto, que se suicidou (e ficou fora da lista por não ser músico). Mais curioso ainda é que nenhum baiano foi atingido pelo sortilégio:
Aracy de Almeida
Contribuição histórica: Cantora símbolo da era do rádio no Brasil, era a intérprete favorita de Noel Rosa
Conexão com Caetano: Gravou o samba dele “A Voz do Morto” em 1968 e se declarou sua fã
O que aconteceu: Amargou anos de ostracismo e terminou como jurada do Show de Calouros de Sílvio Santos
Barão Vermelho
Contribuição histórica: Protagonistas da primeira onda do rock nacional nos anos 1980
Conexão com Caetano: Ele os elogiava constantemente e incluiu a música “Todo Amor Que Houver Nessa Vida”, da banda, em seus shows
O que aconteceu: Cazuza deixou o grupo em 1986 e a banda só voltou a vender bem em 1996, após a morte do vocalista original
Jards Macalé
Contribuição histórica: Um dos mais inventivos participantes do tropicalismo, autor da cult “Gothan City”, apresentada no IV Festival Internacioanl da Canção em 1969
Conexão com Caetano: Hospedou o cantor em sua casa em 1964, produziu o LP Transa e fez vários arranjos para ele, Gal e Bethânia
O que aconteceu: Foi dispensado da gravadora em 1974 e pegou a fama de maldito
John Lennon
Contribuição histórica: É pai de Sean Lennon, amigo dos Beastie Boys
Conexão com Caetano: O baiano gravou “Help!”, de autoria do beatle, no LP Qualquer Coisa, de 1977
O que aconteceu: Foi assassinato a tiros três anos depois, na porta do prédio onde morava em Nova York
Mutantes
Contribuição histórica: Responsáveis pela parcela pop-rock do movimento tropicalista
Conexão com Caetano: Gravaram vários singles e LPs com o cantor e o acompanharam em shows e festivais
O que aconteceu: O trio original se desintegrou em 1973; Arnaldo Baptista despirocou, Rita Lee ficou infeliz e Sérgio Dias virou guitarrista de rock progressivo
Odair José
Contribuição histórica: Primeiro ídolo brega nacional, “terror das empregadas” e autor de hits como “A Pílula”
Envolvimento com Caetano: Foi chamado por ele para tocar o clássico “Vou Tirar Você Desse Lugar” no festival Phono 73
O que aconteceu: Foi vaiado pelo público “cabeça”; tentou gravar um disco conceitual influenciado por The Who e Peter Frampton e nunca mais fez sucesso
Ritchie
Contribuição histórica: Autor do maior hit de 1982, “Menina Veneno”, cujas vendas provocaram ciúme até em Roberto Carlos
Envolvimento com Caetano: Gravou “Shi-Moon”, um tecnopop, com ele
O que aconteceu: Viu seu sucesso ir embora e hoje vive de fazer diagramação para home pages
RPM
Contribuição histórica: Fenômeno do circuito das danceterias e ídolos de meninas pré-púberes na década de 1980
Envolvimento com Caetano: O cantor elogiou os ombros de Paulo Ricardo e reclinou sobre eles enquanto cantava “London London” no programa Chico & Caetano
O que aconteceu: O RPM acabou, voltou e não deu certo, acabou de novo, voltou de novo e não deu certo de novo; Paulo Ricardo, coitado, virou um errante
Sepultura
Contribuição histórica: Grupo brasileiro com maior repercussão internacional em todos os tempos
Envolvimento com Caetano: Subiu ao palco com ele e Carlinhos Brown na Bahia, em 1996
O que aconteceu: No ano seguinte, Max brigou e saiu da banda, antecedendo meses de baixaria nos jornais
Tantra
Contribuição histórica: Grupo de apoio da Legião Urbana em turnês monstruosas, assinou contrato para seu primeiro disco com a gigante Universal Music
Envolvimento com Caetano: O baiano participou do clipe da cover que eles fizeram para “Tropicália”
O que aconteceu: A banda foi dispensada da gravadora e sumiu do mapa
Tão cult quanto um chucrute
Finalmente saiu o filme daquela banda de malucos. Demorou, tem cada história que o pessoal acha que é mentira. Hoje dá para dizer, fácil, que eles estavam à frente do seu tempo. Que mané Velvet Underground! O papo aqui é Queremo Róque!, documentário sobre os 30 anos da banda Repolho, que estreou dentro da programação do Festival de Cinema de Chapecó e tomara que continue disponível em alguma plataforma de streaming.
Para quem não está ligando a verdura ao artista: Repolho é um grupo chapecoense, surgido em 1991 em torno dos irmãos Roberto (vocais) e Demétrio Parnarotto (guitarra), mais Anderson Gambatto (bateria). Vários baixistas e até um perfomer completaram a formação até 2010, quando lançaram o último de seus quatro discos. Nenhum deles vive de direitos autorais, mas o que – e onde e quando e como fizeram – o dinheiro não compra.
Graças ao Repolho, Chapecó (SC) cavou um lugarzinho na efervescente cena musical independente brasileira de década de 1990. Claro que pela música, um porco-pizza coberto por influências confessas de Graforreia Xilarmônica, Frank Jorge, Júpiter Maçã e Marcelo Birck, entre outros gaúchos tortos. E, principalmente, por tudo o que Queremo Róque! (pronuncia-se com o “r” fraco, como em “farofa”) mostra com carinho e sem saudade.
O projeto de um curta aprovado em edital municipal em 2019 virou um longa feito a partir do acervo da banda, com mais de 70 horas de vídeos de show, ensaios, gravações de discos, entrevistas e videoclipes, fotos, recortes e alguns cadernos velhos com as letras das músicas escritas à mão. Sabe-se lá o que o diretor Jivago Del Claro deixou de fora, porque os quase 90 minutos editados são fantásticos. A única coisa em ordem é a cronologia.
Sério, o resto é inacreditável, de tão absurdo. Roberto e Demétrio improvisando um acústico em um estúdio de rádio diante dos quatro Los Hermanos atônitos. O show feito logo depois do atentado de 11 de setembro, em que montaram duas torres de papelão no palco e dois integrantes vestidos de árabe as destruíam a cabeçadas. A plateia urrando o refrão que batiza um dos clássicos da banda, “Porcona”. As gambiarras. O contexto.
Nada supera, porém, as aparições nas TVs locais. Na mais surreal delas, um Roberto vestido de paletó xadrez amarelo dedilha um violão feito com um latão de tinta e bate em um atabaque enquanto grita algo semelhante à música, para mal-estar das apresentadoras em seus tailleurzinhos. A “colonagem cibernética” do Repolho resumida em um programa da conservadora “capital do oeste catarinense” gravado em VHS: choque, ironia, caos e, acima de tudo, descaramento.
Ou, conforme as reportagens abusavam de repetir, irreverência. O substantivo devia se aplicar no caso do Repolho não apenas como sinônimo de besteirol, e sim em sentido literal, a falta de respeito – com o estabelecido, com a ideia de bom gosto, com os limites do que é música, consigo mesmo. “Dizem que o que é bom dura pouco. A gente está aí até hoje para provar que o Repolho é ruim mesmo”, provoca Roberto no final do documentário.
PS: Em 1994, ao escrever para o meu fanzine sobre Repolho e a Horta da Alegria, a primeira fita demo profissional da banda, lasquei um “periga virar cult”. Para mais dicas proféticas, procure-me nas redes sociais.
(Contribuição para o portal Rifferama, referência em música pop catarinense.)
PLAYLIST | como acontecem coisas que a gente nem prevê
Não, não tem Caetano.