#15 | Um monumento ao estado mínimo
A maior atração do verão em Florianópolis não está anunciada nos outdoors da rodovia SC-401 nem cobra ingresso para ser apreciada em todo o seu esplendor
As principais casas noturnas do loteamento anteriormente conhecido como Jurerê Internacional anunciam a programação do verão. O sertanejo impera. Eu não entendo um monte de coisa envolvendo dinheiro, classe social e gosto, mas a maior atração não natural da estação em Florianópolis não aparece em nenhum outdoor da rodovia que dá acesso ao Norte da Ilha de Santa Catarina nem cobra ingresso. Basta seguir reto toda vida até a praia de Canasvieiras, onde em 21 de dezembro foi inaugurado um chuveiro de uma loja famosa pela fachada e pelo ativismo de seu dono.
Tudo na obra é emblemático e impressionante. De perto, é bem mais alta do que as fotos de divulgação sugerem. Dentro, um cidadão de bem de estatura mediana em pé com os braços esticados para cima fica longe de alcançar o teto. A estrutura repousa sobre o aterro que a prefeitura improvisou em 2016 para impedir que o Rio do Brás, poluído por ligações de esgoto irregulares, desemboque no mar. Ao lado, banheiros químicos (sem relação com a marca) completam o serviço. E, coroando a paisagem como uma Capela Sistina da distopia pós-capitalista, o formato.
De acordo com a autoridade competente, houve uma licitação para a instalação do equipamento, essa licitação foi vencida por uma empresa e essa empresa negociou a exploração comercial do equipamento com a loja famosa. Quem quiser mais detalhes deve aprender raspagem de dados, porque uma simples pesquisa no site da prefeitura não retorna resultado algum. O que se sabe até agora é que o protótipo inicial teve que ser reduzido de nove para seis metros quadrados e de quatro para dois chuveiros e, está na cara, não existia nenhuma exigência estética quanto ao projeto.
Antes de reclamar do estilo arquitetônico que caracteriza a loja famosa reproduzido sobre a areia, o florianopolitano mais comedido se lembra que em temporadas passadas já viu chuveiro em forma de choperia e agradece aos céus por alguma fabricante de camisinha ainda não ter se interessado pelo negócio. Como ação publicitária, é um sucesso: três dias depois de aberto à população, amanheceu pichado. O dono ativista atribuiu a “desordem e destruição” à extrema-esquerda e mandou repintar. Na mesma tarde, já estava tudo branquinho de novo.
Ninguém usou o polêmico chuveiro durante os 43 minutos que dediquei à contemplação de sua magnificência. As pessoas saíam do mar, passavam em frente, olhavam e continuavam o rumo. Três camelôs, alheios ao desinteresse geral, aproveitavam a sombra da construção. Aí resolvi bater umas fotos para ilustrar este relato. No mesmo instante, um casal tirou uma selfie com o troço ao fundo. Em seguida, uma mulher e uma criança fizeram o mesmo. De repente, eu só ouvia o clique dos celulares rivalizando com a cacofonia das caixinhas de som. Era como se eu que houvesse deflagrado o processo.
Saí correndo, apavorado. Enquanto me culpava por fazer meus semelhantes perderem a vergonha do ridículo, pensei no futuro. A previsão é de que o equipamento permaneça na praia até o final de janeiro. O dono ativista afirmou já ter recebido pedidos para repetir a ação por todo o litoral brasileiro. Espero sinceramente que reveja seus planos e, com a boa vontade da administração municipal, fique por ali em definitivo. Até o dia em que o Rio do Brás reivindicar seu curso natural e só restem ruínas, como um monumento à civilização que normalizou a barbaridade.
PS: Embora careçam de checagem os rumores de que quem toma banho no supracitado chuveiro imediatamente começa a acreditar em cloroquina e em meritocracia, não me arrisquei.
Autoclipagem (ou Tudo o que me cita me excita)
O jornalista Mateus Mello cometeu uma reportagem sobre grandes discos da MPB que completam 50 anos em 2022 e fez o favor de me consultar como uma das fontes. Entre outras unanimidades, citei Acabou Chorare (Novos Baianos), Clube da Esquina (Milton Nascimento, Lô Borges etc), Expresso 2222 (Gilberto Gil) e, para gáudio da oposição, Transa (Caetano Veloso). Normal, não tem muito como fugir disso.
Mas é como eu disse: em todos os anos da década de 2020 é possível repetir a pauta das obras-primas cinquentenárias da música brasileira. Em nenhum outro período foram lançados tantos clássicos quanto de 1970 a 1979. Felizmente, o colega teve a lucidez de entrevistar gente muito mais gabaritada do que eu para tentar explicar o porquê disso.
Quero também deixar registrado o elogio à organização que ele deu para o meu confuso discurso. Mal sei perguntar, que dirá responder. Inicio falando de uma coisa, não concluo e já parto para outra, um horror. Graças ao tino do repórter, do arrazoado que expeli emergem declarações com começo, meio e fim e – até eu me surpreendi – algum sentido.
playlist | faz pose que não parece
Primeira seleta do ano, abençoada pela ausência de critério que rege a lenta adaptação ao fim do recesso. Pelo calor desses dias em Florianópolis, aliado à preguiça companheira de todas as temperaturas, deveria ter mais reggae. Jah só releva porque reconhece o esforço que foi chegar até aqui.