Andava pelo bairro sonhando em cantar como Dio no Black Sabbath que rolava no fone quando comecei a ouvir vozes na cabeça. “Atravessa a rua, atravessa a rua”, alternavam-se em jogral. Intrigado, obedeci. Na calçada oposta, tinha uma casca de banana já meio escurecida. Fingi que ia amarrar o cadarço e me abaixei para observar melhor os efeitos da decomposição. As manchinhas pretas eram, na verdade, letras que formavam palavras que formavam frases. “Nunca foi uma excelente cantora” e “era gordinha e brigava com a balança”, identifiquei.
Ainda procurando algum significado para aquelas inscrições, uma das vozes explicou que faziam parte de uma análise da trajetória de Marília Mendonça publicada em um grande jornal. Reclamou que nem morta a mulher deixava de ser avaliada pelo peso; que se fosse um homem ninguém ia falar da barriga dele; que a luta contra a objetificação do corpo feminino pelo patriarcado é uma guerra diária; que normalizar esse tipo de ataque gratuito, covarde, ofensivo, machista e misógino ajudava a legitimar o show de horrores do Brasil atual. “E ela cantava superbem”, arrematou.
Outra voz reagiu. Defendeu que as tais menções apareciam no 10º e do 11º parágrafos de um longo artigo elogioso sobre as marcas e a importância dela não só para o sertanejo, como também para a música nacional; que a abordagem ao seu peso estava inserida em um contexto de ditadura estética que discriminava a própria artista; que ela mesma divulgava seus regimes, dietas e procedimentos para emagrecer; que o tribunal da internet confundia fato com opinião e jornalismo com textão canonizante para redes sociais. “O resto é gosto pessoal, concorde-se ou não”, decretou.
Munidas de suas razões, ambas as vozes exigiam que eu me manifestasse. Eu poderia me alinhar aos que pregavam o linchamento do autor por um crime imprescritível e condená-lo ao banimento eterno. Eu poderia relativizar a gritaria e acreditar que os trechos isolados não refletiam o tom do artigo. Nas duas hipóteses, eu deveria ler o texto inteiro antes de me posicionar. Ao pegar o celular para acessar o link, vi a bolinha vermelha sinalizando uma nova mensagem no WhatsApp. Fora enviada por um número desconhecido que começava com 1, seguido de 876, mais sete algarismos.
Abri. Era o Bob Marley da Casca de Banana. Em uma tradução livre do patoá jamaicano, dizia mais ou menos assim: “A Babilônia não tá interessada no que tu acha e muito menos se tu tá no teu lugar de fala [‘situated knowledge’, no original], só quer que tu escorreggae. Em vez de jogar xadrez com pombos, te liga nos três passarinhos e tudo vai dar certo, man.” Teclei “obrigado, Bob da Banana!” e estava pronto para prosseguir a caminhada, mas ele queria papo. Primeiro, mandou um joinha. Depois, avisou que havia sido feito um depósito na minha conta e pediu que eu confirmasse o PIX para recebimento clicando no link informado.
O que aprendi com a política
Na noite de 8 de novembro de 2019, eu estava no salão de um restaurante de uma cidade próxima à fronteira com a Argentina para mais uma agenda de trabalho. O partido promovia um encontro regional com dirigentes, vereadores, prefeitos, deputados estaduais e federais, pré-candidatos e ex-ocupantes de cargos eletivos. Do menor ao maior, eles se revezaram no microfone para destacar o comprometimento da legenda com a democracia, louvar realizações de correligionários e reafirmar sua confiança na vitória nas eleições do ano seguinte. Nenhum pio sobre o que havia acontecido no final de tarde.
Às 17h40 daquela sexta, Lula era solto depois de 580 dias em uma cela especial com 15 metros quadrados isolada no último andar da sede da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, onde cumpria pena superior a 12 anos por corrupção e lavagem de dinheiro. O petista devia a liberdade à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de permitir que condenados só fossem presos com o trânsito em julgado, ou seja, esgotados os recursos judiciais. Pelo placar apertado de 6 votos a 5, a Corte alterava a jurisprudência que, desde 2016, autorizava prisões logo após a condenação em segunda instância.
Nem uma simples alusão, uma saudação, um protesto, um gracejo, nada: em uma reunião de políticos para falar de política os oradores conseguiram discursar por mais de quatro horas sem mencionar o maior fato político do dia, quiçá do ano. Para eles e para a plateia que ouviu tudo à espera da maionese que seria servida na sequência, importava (em ordem aleatória) garantir emendas, selar acordos, arrancar promessas, cavar um lugar na chapa, arrumar um emprego, tirar selfies, postar. A realpolitik atropelava qualquer idealismo, qualquer ideologia.
Ali, no mundo de boletos, salários, aluguéis, empréstimos e dívidas, a política se desenvolvia a varejo, atendendo a demandas práticas com resultados imediatos e recíprocos. Lula, a Vaza-Jato ou mesmo Moro e Jair não passavam de abstrações que interessavam somente a uma minoria privilegiada por ainda ter senso crítico. Essa foi uma das lições que aprendi em um meio que já pagou por meu tempo e meu ofício em cinco ocasiões – da direita à esquerda, sempre como indicação técnica, como convém a um profissional não vinculado a nenhum partido. Aqui vão outras:
Quem tem cargos, tem prioridade. Nada tem capacidade maior de atrair aliados, conquistar apoios e mobilizar militantes do que cargos. E só quem tem cargos a distribuir é quem tem mandato ou controla feudos governamentais. Pode ser um reles vereador ou um secretário do primeiro escalão: durante seus quatro anos no exercício da função, ele será mais útil para o partido do que um ex-governador ou ex-senador.
Quanto mais pessoas lhe deverem favores, melhor. É uma consequência direta da situação anterior: um dia você dá para no outro poder pedir. Cargos, verbas, indicação, carona, um cigarro, o escambau. O político que se norteia por esse mantra nunca é abandonado na beira da estrada, porque sempre haverá quem se sentirá com a obrigação moral de lhe estender a mão – principalmente quando ele estiver sem mandato.
Comissionado bajula, terceirizado fala a verdade. Está implícito no contrato de cada pessoa lotada no gabinete de um político que sua função primordial é puxar o saco dele. Quando está disposto a pagar – sempre com dinheiro público – para ouvir que está errado, ele vai buscar uma consultoria externa. De preferência, prestada por alguém que possa ser enquadrado no item anterior.
Tem bastante gente bem-intencionada e preparada. A criminalização da política reforçou a crença generalizada de que todo o político é bandido. Não é verdade. De progressistas a conservadores, há muitas pessoas que entendem de políticas públicas e entraram nessa com o firme propósito de construir uma sociedade melhor. O problema é que elas sempre perdem a vez para especialistas nos tópicos anteriores.
Agora, algo que realmente preste
Agnotologia – Você sabe que vive no melhor dos tempos e no pior dos tempos ao mesmo tempo quando descobre que foi inventada uma ciência para estudar a “produção da ignorância” de forma intencional. Tudo leva a crer que em breve o Brasil será reconhecido como uma potência na área.
Músicas menores e mais objetivas – Solução para prender a atenção dos jovens que não ouvem canções com mais de dois minutos e meio de duração até o fim, característica que já está sendo chamada de “audição ansiosa”. Eu me surpreendo como a cada dia o mercado musical adota regrinhas para contornar o óbvio: esse público não gosta de música.
Por que este texto pode mudar seu cérebro – Como a leitura altera a química, a física, o funcionamento e a anatomia do nosso cérebro. Difícil vai ser convencer o cara que não tem saco para ouvir uma música de dois minutos e meio a ler.
Pão – Conto de Margaret Atwood publicado em 1983, dois anos antes de a autora canadense lançar o livro que originaria a sensacional série Handmand’s Tale. Achei muito bonito o trecho abaixo:
Imagine uma fome intolerável. Agora imagine um pedaço de pão. As duas coisas são reais, mas ocorre de apenas uma estar no mesmo cômodo que você. Coloque-se em outro cômodo, é para isso que serve a mente.
APARELHO | Quem matou a alavanca na guitarra foi criado a gérmen de trigo
Uma verdadeira ficção é uma verdade que nunca aconteceu? Se você toca “Polícia” e em seguida aparece uma viatura significa que a lei é para todos? Que sabor um vegetariano sente de um bife que não está comendo? Esses e outros koans moleques permeiam mais uma edição recheada de truísmos nada óbvios que a realidade consensual insiste em ignorar. Mas, enquanto Buda permitir, estaremos aqui para lembrar que nem sempre se vê a mágica do absurdo. O pai tá ooooom!
PLAYLIST | doce como açúcar, explode na sua boca
Diz o clichê que política é como nuvem: você olha e ela está de um jeito; olha de novo e ela já mudou. Música também pode ser assim, só que a nuvem é você. Tudo depende das circunstâncias.
obrigado bob da banana